Precisamos ser antirracistas! Historiadora de Lagoa da Prata explica sobre questões raciais no Brasil

Além da explicação da historiadora Ana Ruth Laine, há também o relato da lagopratense Amanda Andrade sobre o processo de aceitação de suas raízes. – Foto: Amanda Andrade/Arquivo pessoal

Precisamos ser antirracistas! Historiadora de Lagoa da Prata explica sobre questões raciais no Brasil

Reportagem: Bárbara Félix

“O que é ser negro no Brasil?” ou “como combater o racismo em uma sociedade que não se assume racista?”, são alguns dos vários questionamentos que rondam na mente neste momento em que a luta pelo fim do racismo e preconceito é mais forte do que nunca.

Assim, para que estas questões sejam respondidas de forma didática, para maior entendimento, a redação do Sou+Lagoa conversou com a historiadora de Lagoa da Prata, Ana Ruth Laine.

Ana Ruth Laine, historiadora de Lagoa da Prata, explica de forma didática, sobre o que é ser negro no Brasil. – Foto: Ana Ruth/ Arquivo pessoal

Segundo Ana, em respostas às questões, todos devem pensar sobre o processo de criação de identidades, a respeito da construção da sociedade brasileira e as memórias que compõem a identidade nacional como brasileiro, pois conforme ela, o racismo e o preconceito estão enraizados na sociedade, e por isso é necessário conhecer sobre o processo da estruturação e organização da sociedade.

“Quem criou essa identidade nacional? Quem decide o que é ou não a ‘cara do Brasil’? Quando a gente entende que a construção dessa identidade parte de uma narrativa da colonização europeia usando como ponto de partida a sua cultura, os seus valores, práticas e crenças como se tivessem o direito de avaliar e julgar o que é feio ou belo, certo ou errado e usando como referência a sua própria cultura, é claro que se colocaram no topo enquanto as outras foram consideradas inferiores e atrasadas”, explicou a historiadora, que continuou alegando que este conceito é chamado de etnocentrismo, que não contempla e nem dá voz a todos os grupos.

“Nesse processo de seleção para a formação de uma identidade, temos as ‘memórias subterrâneas’ que ficam de fora dessa construção. Entendemos assim que esse processo abre espaço para o preconceito e o racismo, que estão enraizados em nossa própria identidade, onde a hegemonia marginalizou e excluiu os mais pobres, as minorias políticas; essa criação da memória e identidade brasileira tentou apagar, diminuir e oprimir os negros, os pobres e também as mulheres”, falou.

A historiadora ainda contou que o racismo chegou a ser legitimado pela ciência europeia, com a Teoria de Raças, do final do século XIX e início do século XX. “A ideia da hierarquização de ‘raças’, alegava que grupos humanos eram mais inteligentes, capazes e habilidosos do que outros grupos. Cesare Lombroso foi um teórico e criminalista italiano que chegou a escrever sobre a relação da predisposição a cometer crimes com a aparência física. Não parece atual para você esse tipo de pensamento? Cesare usava a frenologia, que é basicamente ligar a forma e a medida do crânio aos traços de personalidade e em seu modelo de criminoso podemos citar os doentes mentais, negros e não europeus”, exemplificou Ana Ruth.

Ela ainda ressaltou que no início da década de 90, do século XX, o projeto Genoma Humano provou que não existem diferenças genéticas para a classificação e divisão dos seres humanos em nível de inteligência, aptidões e que a pureza de raça é equivocada.

Vidas negras, escravidão e racismo

A historiadora Ana Ruth também falou sobre o etnocentrismo xenofóbico, a ciência, e sobre o conceito de raça como criação política de que existem seres humanos inferiores, legitimação e justificativa para a colonização europeia, que tinha o “dever” de civilizar outros povos, dizimando populações, incitando o racismo e xenofobia, impondo sua cultura, marginalizando, modificando e apagando a história e identidade dos povos que foram dominados.

“A história da África e do negro no Brasil foi negada e excluída, e quando foi contada, partia do ponto de vista do branco colonizador. Sobre o comércio de vidas negras, pensar que encontraram justificativas para tratar seres humanos como mercadorias é totalmente inacreditável. É um episódio da história com um processo doloroso para quem possui a pele que carrega e conta sua própria história além de qualquer documento ou relato escrito por outros”, declarou Ana Ruth.

Ela ainda salientou que muitas pessoas justificam a escravidão imposta pelos europeus ao falarem que no continente africano já existia escravidão. “É impossível você comparar a escravidão dos africanos que possuía funções sociais para seus reinos, enquanto os europeus transformaram os africanos em objetos de mercadoria para serem vendidos. Muitas pessoas acham que África é um país e não um continente, que é um país muito pobre e isso acaba associando a ideia de que os negros ‘são todos iguais’, e ainda sobre aquela mesma hierarquia das sociedades, colocando o continente africano como sendo composto apenas por várias tribos primitivas excluindo suas diferentes etnias, tradições, línguas, organizações, tecnologias de produtividade”, alegou a historiadora, que ainda destacou que a colonização atingiu a essência africana apropriando-se de seus costumes, apagando suas memórias e saberes, mas na nova terra, apesar de tanta violência, os africanos encontraram formas de se reinventarem e criarem resistência ao domínio do colonizador por meio de laços com sua origem, através da cultura como a música, religiosidade, línguas e costumes que compõem em boa parte da Cultura Brasileira”.

“As pessoas reconhecerem a influência africana em nossa sociedade, na identidade do nosso país, não garante que o racismo não exista. A democracia racial é uma desculpa em dizer que, a miscigenação da nação impede que ocorra racismo e preconceito, uma vez que todos são misturados. A criação dessa ideia causou o silenciamento das vozes dos negros no Brasil, que não deixavam de sofrer com o racismo, mas tinham a sua dor diminuída, pela ideia de harmonia e igualdade racial. É interessante pensar em como a miscigenação foi transformada em celebração e orgulho, uma vez que fez parte do aperfeiçoamento racial para eliminar a raça negra”, disse Ana Ruth.

Projeto para eliminar a raça negra no Brasil

Ana Ruth contou sobre um fato importante de tentativa de criar uma identidade nacional por parte do Estado e da ciência. Segundo a historiadora, Raimundo Nina Rodrigues, foi um médico defensor e precursor da ideia de pureza racial, do projeto de branqueamento no Brasil onde a miscigenação era uma estratégia perfeita para eliminar a raça negra.  “Cura social e até cruzamento para a produção de pessoas cada vez mais brancas. Essa linha de ideias e teorias culpavam os negros e mestiços pelas mazelas nacionais, e assim o branqueamento racial foi visto como a melhor forma de garantir um futuro melhor para o país”, falou a historiadora.

Ana Ruth explicou ainda, que a partir das décadas de 20 e 30 do século XX, iniciaram-se nos modelos sociais, algumas alterações. A miscigenação que antes era tratada como uma “mancha” a ser superada para a totalidade de uma sociedade branca, passa a fazer parte de um discurso de paz e harmonia, onde a ideia de que os brancos, negros e indígenas viviam em uma sociedade igualitária, edificando assim a ideia de democracia racial, perpetuando de forma sutil o racismo e a opressão.

“A mestiçagem abre espaço para a apropriação cultural, tira a essência de elementos de suas origens, embranquece as crenças, e ainda como identidade nacional, esconde a violência, abafa o sofrimento e as dores das mulheres negras e indígenas que foram estupradas, dos povos que tiveram suas vidas e culturas roubadas. A miscigenação não deve abafar a diversidade étnica, é necessário mostrar os conflitos que a compõem sem generalizar que o brasileiro é apenas uma mistura de etnias e que essa mistura ocorreu de forma tranquila e natural. O mito da democracia racial expõe essa naturalização da mestiçagem no país, fundamentando o racismo estrutural que esconde a realidade do racismo, preconceito e xenofobia”, alegou a historiadora.

Identidade brasileira sendo contada e escrita pela supremacia branca

Falando sobre a criação de identidades, a construção da sociedade e as memórias que compõem a identidade nacional como brasileiro, Ana Ruth evidenciou que as conquistas dos afrodescendentes, pela representatividade da comunidade e seu espaço igualitário na sociedade brasileira nunca veio como presente de ‘mão beijada’, e sim com lutas e pressão exercida pela comunidade, os movimentos sociais, os conselhos universitários e da sociedade pela mudança de privilégios.

Reparação e educação antirracista

Algumas normativas surgiram para abarcar leis e promover reparação e uma educação antirracista.  No ano de 2003, o Governo Federal sancionou a Lei nº 10.639/03-MEC, a qual inclui na Rede de Ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, alterando a Lei Diretrizes e Bases da Educação Brasileira –  LDB 9394/96, na qual  os sistemas de ensino e seus estabelecimentos nos diferentes níveis devem possibilitar o conhecimento e cumprimento das demandas dos afro-brasileiros, reparando desigualdades historicamente estabelecidas. Conteúdos como História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição dos negros nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. No mesmo ano, foi criada a Seppir e instituída a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial.

Para esta questão, Ana Ruth afirma que é importante destacar que o cenário político muda constantemente e isso implica diretamente na educação e suas ações. “Essa instabilidade afeta a formação escolar e acaba aumentando a evasão escolar. Isso é grave, pois é o ambiente escolar que deve incentivar os estudantes a continuarem seus estudos, a participarem ativamente e democraticamente da sociedade que vivemos, reconhecer o seu papel como sujeito histórico ativo com seus deveres e direitos. Quantos alunos de escolas públicas vocês conhecem que conseguiram uma bolsa de estudos? Sem pagar cursinho presencial ou on-line, continuando a trabalhar nos empregos de meio período fora da escola. Compare com a quantidade de quem estuda em escola privada. Não é difícil perceber como é um sistema que exclui objetivamente as minorias, é altamente seletivo e restrito”, explicou.

Negro e a educação no Brasil, em estatísticas

Conforme a revista Carta Capital, no ano de 2016, apesar dos negros serem a maioria da população brasileira, sendo 52,9% no ano de 2014, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há um fosso enorme com relação à educação de negros e brancos, atestado, por exemplo, pelos índices de analfabetismo: 11,2% dos negros e 5% dos brancos.

Sobre isso, Ana Ruth falou que as estatísticas confirmam um panorama escolar que expõe a carência e ineficácia de políticas e ações afirmativas na integração dessa parcela da população. Logo dentre as ações e políticas reparatórias que visam uma educação mais abrangente e uma sociedade mais igualitária, a lei n° 12.711, de 29 de agosto de 2012, Lei de Cotas, que reserva 50% das vagas em todos os cursos nas instituições federais de ensino superior, considerando, para esse ingresso, critérios sociorraciais.

De acordo a página oficial da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), entre 2013 e 2015, a política afirmativa de reserva de cotas garantiu o acesso a, aproximadamente, 150 mil estudantes negros em instituições de ensino superior em todo o país. Segundo dados do Ministério da Educação, em 1997, o percentual de jovens negros, entre 18 e 24 anos, que cursavam ou haviam concluído o ensino superior era de 1,8%, e o de pardos, 2,2%. Em 2013, esses percentuais já haviam subido para 8,8% e 11%, respectivamente. Apesar desse aumento, considerando o universo estatístico total dos estudantes do ensino superior, o número de negros ainda é escasso, daí a importância das cotas na efetivação de uma mudança de perfil, que tende a ser crescente nas universidades.

Nesta abordagem, a historiadora Ana Ruth destacou que é necessário que a educação se reconstrua todos os dias sendo mais representativa, sendo promotora de igualdade e justiça social.

“O conhecimento deve ser revisado e constantemente transformado, que consiga dar voz aos oprimidos, desconhecidos que durante tanto tempo foram esquecidos. Que cada um conheça e reconheça o seu papel na sociedade em que vivemos, como o construtor de sua própria história. Que represente sua própria luta, sua cultura, suas origens e sua vida”, declarou Ana Ruth.

Relato de lagopratense sobre processo de aceitação de suas raízes

A lagopratense Amanda Andrade, que é negra, também participou desta reportagem, junto com Ana Ruth – ambas são amigas.

Amanda contou sobre como foi o processo de se aceitar e aceitar as suas raízes. “Desde nova eu via que a sociedade pregava muito que o cabelo liso e que a pele branca que era o bonito, que era o certo e eu cresci com isso. Com 7, 8 anos eu passei por uma situação na escola que me deixou muito frustrada, onde um garoto fez piada com o meu cabelo e desde então eu falei com a minha mãe que eu queria ter o meu cabelo baixo, quero ele liso e disse que não voltaria para a escola sem isso”, disse Amanda.

Além da explicação da historiadora Ana Ruth Laine, há também o relato da lagopratense Amanda Andrade sobre o processo de aceitação de suas raízes. – Foto: Amanda Andrade/Arquivo pessoal

Ela ainda conta que a mãe percebeu que havia ficado triste com a situação ocorrida, e comprou uma alisante para ela.  “Eu passei com a minha tia e desde então continuei alisando ele. Isso foi durante 10 anos da minha vida. Eu comecei com sete e parei com 17 anos. Foi muito difícil, eu via que o cabelo crespo para a sociedade, pelo menos em Lagoa da Prata que é bem pequena e agora que está mudando, eu via que cabelo crespo não era bem visto pelas pessoas e eu ligava para a opinião das pessoas. Eu não sabia nem como era a textura do meu cabelo, não sabia como ele era natural pois quando crescia dois dedos de raiz eu já ia e alisava novamente, eu precisava ficar sempre com o cabelo baixo, com ele liso e eu era muito refém disso, dessa necessidade de me encaixar no que a sociedade falava, eu acreditava muito no que os outros falavam e ligava muito para a opinião dos outros”, declarou a lagopratense.

Ela ainda relata que acordava duas horas antes da escola para poder alisar seu cabelo, pra ficar bem liso. “Quando eu dançava, ele sempre estava com um coque muito arrumado e preso, eu tinha essa neura de que tinha que estar perfeito. Então eu sofri bastante com isso até os meus 17 anos e que ao mesmo tempo que eu estava com o cabelo alisado, tinham pessoas que falavam mal, e se eu não estava com o cabelo do jeito que a sociedade e as pessoas queriam, estavam falando mal também. Eu estava sem saber o que fazer com isso. De tanto tentar me adaptar ao padrão eu alisei o meu cabelo e tive um corte químico, foi ficando muito frágil. Então eu percebi que estava me maltratando, que eu poderia deixar meu cabelo natural, que ele era bonito e que eu sou bonita do jeito que eu vim. Então na época eu conheci a transição capilar”, contou Amanda.

Sobre a transição capilar, ela disse que foi pesquisando mais sobre e colocou na cabeça de que iria fazer, e fez! A partir disso, Amanda falou que teve mais conhecimento de suas origens.

“Tive mais conhecimento do cabelo crespo, que ele era bonito, que o cabelo crespo é lindo, maravilhoso, perfeito, amo! Eu tive uma noção de que eu estava sendo idiota por estar dando ouvido para a opinião das outras pessoas que não agregavam em nada da minha vida. Em um belo dia eu peguei uma tesoura, cortei o meu cabelo e fui ser feliz e estou até hoje. Eu me descobri como uma mulher, preta, e poderosa. Eu mudei muito. Antes eu era muito mais tímida e fechada, não usava nem batom, nem nada, eu era muito diferente do que eu sou hoje. Hoje eu posso falar, mesmo estando em constante aprendizado, que eu sou totalmente realizada naquilo que eu sou e isso mudou muito depois que eu me descobri como mulher preta”, finalizou.

Redação